O Lixão é um presente
- Márcio Júnior
- 4 de jan. de 2017
- 3 min de leitura
“A gente não quer nada deles que não esteja aqui jogado, rasgado, atirado. A gente não quer outra coisa senão esse lixão para viver. Esse lixão para morrer, ser enterrado. Pra criar nossos filhos, ensinar o nosso ofício, dar de comer. Pra continuar na graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não faltar brinquedo, comida, trabalho.” (Pág. 25, Angu de Sangue, Marcelino Freire, 2000.)
Quem nos presenteia com o conto “Muribeca” é Marcelino Freire, escritor que nasceu em Sertânia, Pernambuco, em 1967. Desde 1991 reside em São Paulo. O contexto e o clima de Sertânia desenharam o alto teor de saturação do drama vivido pelos personagens.
Entre brinquedos, arroz, vestidos de noiva e urubus, Muribeca abre os trabalhos em seu livro Angu de Sangue (Ateliê Editorial, 2000). Talvez já mostrasse a mistura que estaria por vir. Neste conto, a família resiste a uma possível desocupação do lixão que vivem, pois lá encontram tudo que precisam em uma espécie de paraíso das coisas reapropriadas que ficaram em desuso. Muribeca é um reflexo da sociedade capitalista e urbana que está esgotada, amontoada no acumulo de recursos. No lixão não há falta, sobram objetos que se quer foram usados algum dia. A voz de Muribeca encontra esperança em um lugar esquecido. Muribeca é um município do estado de Sergipe, antes era considerado como prospero pela ferrovia que cruza a cidade, mas hoje é uma região pobre e sucateada.
Angu de Sangue reúne dramas vividos por dezessete personagens, cada um com sua vivência e conflito. O que há em comum entre essas histórias paralelas? Na verdade seria a própria mistura entre suas diferenças, por isso o Angu. O sangue estaria no clima de tormenta, violência e conflito vivido pelos personagens, ou até mesmo, o próprio sangue que, por exemplo, acompanha o conto que dá título ao livro, “Angu de sangue”. O sangue que também escorre de cada palavra, como no conto “Socorrinho” em que o personagem vai atrás da amada para dizer o que falta em cinquenta anos. O que sempre falta é a falta. Marcelino utiliza do significado tão profundo da palavra. O subentendimento das narrativas deixa o leitor atento a cada palavra.
Em o “Filho do puto”, a frase “É positivo, doutor?” atormenta e aflige uma futura mãe que necessita do resultado do exame. O silêncio do doutor desespera Maria do Socorro até que chega a resposta: “A senhora está com AIDS, dona Socorro”. O clima de felicidade é quebrado por um resultado que levou a outro. E no final, tudo que Dona Socorro quer saber é o destino da criança que é filho do “puto”, culpado por essa situação. O conto termina com “Pegou o ônibus”.
Um dos contos mais intrigantes é o “Volte outro dia”. “Voltar outro dia eu não volto”, o mendigo ameaça com essa frase o personagem da história. Mas ele não tem comida, não sabe cozinhar e é pobre. Então, deu-lhe o que tinha de moeda e se despediu, mas a campainha tocou e era o mendigo novamente. O mendigo insistiu e sempre falava que não voltaria outro dia. O personagem também não estava suportando o fedor de cabelo de mijo e cocô do mendigo. Por último, ofereceu água, sugeriu voltar outro dia e bateu a porta. O silêncio permeou, então percebeu que, finalmente, o mendigo tinha ido. Mas na verdade, será que ele tinha desaparecido? O cheiro de mijo vinha do banheiro, a cortina estava suja, o tapete cheio de pelo. O cheiro estava, mas ele não. Ouve-se a campainha tocar e ele vai vingativo, mas era o entregador de pizza.
O conto critica a necessidade de não enxergar ou não querer enxergar. O mendigo poderia ser uma oportunidade, uma chance, vida, compaixão ou nós mesmos. A história ajuda a desenhar a proposta do livro. O angu que existe dentro de nós, um conflito que não nos permite encarar os problemas que não podem ser deixados para outro dia. A direção somos nós e o que há entorno é o vazio. Pretendo dizer que Angu de Sangue nos move psicologicamente em nossas personalidades e percepções questionando um valor de angústia ou gratificação da sociedade contemporânea.

(Foto: Internet)
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